terça-feira, 8 de maio de 2012

O DINHEIRO DE SANTO ANDRÉ


Irmão do ex-prefeito Celso Daniel diz para promotores que um esquema de propina foi parar nas mãos da cúpula do PT




Dirceu (à esq.), sobre as acusações do irmão do prefeito (à dir.):"Cabe à Justiça comprovar as denúncias"



Após cinco meses de trabalho, uma equipe de promotores de Santo André, cidade da região do ABC paulista, desvendou um esquema de cobrança de propina que envolvia funcionários da prefeitura local, que é comandada pelo PT. Na última semana, a investigação transbordou os limites do município e virou assunto nacional depois que surgiram indicações de que parte do dinheiro arrecadado de forma criminosa junto a empresários locais pode ter financiado campanhas de candidatos do partido. Mais grave: de acordo com um dos depoimentos colhidos pelos promotores, o montante coletado ilegalmente em Santo André teria sido entregue ao deputado federal José Dirceu, presidente do PT e coordenador da campanha de Lula. O esquema teria arrecadado 1,2 milhão de reais no ano passado. Quem apontou para a existência de um dinheiroduto que arrecadava recursos em Santo André e o entregava a caciques petistas foi o médico João Francisco Daniel, irmão do ex-prefeito da cidade Celso Daniel, assassinado em janeiro. De acordo com o relato de Francisco Daniel aos promotores, seu irmão tinha conhecimento da extorsão. Ainda segundo Francisco Daniel, tanto a campanha da prefeita Marta Suplicy, de São Paulo, quanto a atual campanha de Lula receberam recursos oriundos do esquema. "O PT é igual aos outros. Age igual nas eleições, com caixa dois, no esquema de arrecadação", afirma o médico.

José Luis da Conceição/Ag. Estado

Celso Daniel: o amigo na mira

Entre as prefeituras do PT, Santo André não é um município qualquer. A cidade está entre as 25 maiores do Brasil. Foi na região que nasceram o PT e a CUT e que Lula começou sua carreira política. Além desse aspecto simbólico, Santo André sempre foi considerada uma vitrine da administração petista. Os projetos administrativos desenvolvidos no município servem de referência para as prefeituras do partido espalhadas pelo Brasil. As primeiras suspeitas de que havia algo de errado atrás da cidade-modelo surgiram após o assassinato do ex-prefeito Celso Daniel, ocorrido durante um seqüestro. Num primeiro momento, a polícia chegou a investigar Sérgio Gomes da Silva, o empresário que dirigia o carro que levava Celso Daniel na hora do seqüestro, para verificar se ele teria alguma conexão com o crime. Sérgio tinha sido segurança do ex-prefeito. Depois, tornou-se seu amigo íntimo. Havia denúncias de que ele enriquecera rapidamente mantendo negócios ilegais com a prefeitura. Nada foi apurado contra ele no caso do assassinato. Ao fim da investigação, a polícia concluiu que se tratava de um seqüestro comum.
No caso da cobrança de propina que se investiga agora, a situação de Sérgio Gomes da Silva ficou diferente. Na semana passada, ele foi apontado pelo Ministério Público como o chefe da quadrilha que tomava dinheiro de empresas de ônibus de Santo André. O médico Francisco Daniel disse que, em virtude de seu parentesco com o prefeito, foi procurado por um empresário que reclamava de achaques praticados por Sérgio Gomes da Silva. Segundo seu relato, um empresário do setor de ônibus contou a ele ter sido obrigado a aceitar um acordo para pagar 40.000 reais por mês. Francisco Daniel pediu ao irmão que agendasse um encontro entre o empresário e o setor de transportes da prefeitura. Mais tarde, em um encontro informal, o ex-secretário de Comunicação da prefeitura, Gilberto Carvalho, teria explicado a ele como funcionava o esquema. "Ele disse que o dinheiro da propina era todo para fazer a campanha do partido", conta o médico. O irmão do ex-prefeito relatou aos promotores detalhes de conversa que teria tido com a ex-mulher do prefeito, Miriam. "Ela me disse que Celso sempre soube de tudo, mas tolerava porque se tratava de arrecadação para campanha." A ex-mulher teria revelado uma mudança no humor do prefeito em relação a esse assunto. "Quando ele descobriu que o dinheiro estava enriquecendo seus colaboradores, disse que tomaria providência", contou.

Armando Favaro/AE

Sérgio Gomes: enriquecimento rápido e influência no governo petista

No meio da tempestade causada pelas denúncias contra o PT, seu presidente, José Dirceu, qualificou as acusações de "caluniosas" e declarou-se "tranqüilo, sereno e absolutamente inocente". Lula não teve a mesma serenidade do colega petista. "As denúncias fazem parte do esquema de terrorismo do próprio governo contra o processo eleitoral brasileiro", disse o candidato. Talvez fosse mais adequado considerar o caso ainda prematuro e evitar acusar o governo pelas denúncias partidas de Santo André, até mesmo por uma questão de bom senso. Afinal, é hábito dos políticos acusar sempre os adversários de complô quando alguma coisa aparece contra eles ou seu partido.
A ligação da propina com a cúpula do PT é uma conclusão que, por enquanto, se baseia apenas na declaração do irmão de Celso Daniel. Francisco Daniel não tem prova do que afirmou. Ele contou ao Ministério Público aquilo que teria ouvido de pessoas próximas ao prefeito assassinado. Quanto ao esquema de recolhimento das propinas, os promotores reuniram provas contundentes. O dono de uma empresa de ônibus confirmou em seu depoimento que pagava uma caixinha, entregou documentos com detalhes do funcionamento do caixa dois das empresas de ônibus e revelou o nome de todos os participantes do esquema. Com base nessas informações, os promotores pediram a prisão de seis acusados. A nova tarefa é buscar evidências para confirmar ou não as denúncias feitas por Francisco Daniel sobre a conexão nacional do crime. Na quinta-feira, as duas pessoas que teriam dado detalhes sobre o esquema a Francisco Daniel negaram tudo. A ex-mulher do prefeito, Miriam Belchior, e o ex-secretário de Comunicação da prefeitura, Gilberto Carvalho, assinaram uma nota conjunta em que acusam Francisco Daniel de representar interesses de empresários de ônibus.

Rogério Monteiro

O prefeito Palocci: molho de tomate com ervilha

O PT é o partido que mais cresceu no Brasil nas últimas eleições. Na propaganda petista na TV, o locutor repete a todo instante que um em cada quatro brasileiros vive sob administração petista. Metade das cidades com mais de 200.000 eleitores está experimentando um governo do PT e cinco Estados são governados por petistas. Um dos pontos mais repetidos no discurso petista é a honestidade dos integrantes do partido. O PT, de fato, conseguiu por muito tempo um índice superior ao dos outros partidos nesse item, especialmente nos tempos em que estava só na oposição. Mas o processo de expansão acelerada da legenda, com a conquista de câmaras, prefeituras e até de governos, encarregou-se de providenciar vários casos de corrupção sob o guarda-chuva petista. No mês passado, a Justiça cancelou uma licitação de 1,2 milhão de reais para a compra de cestas básicas na cidade de Ribeirão Preto, governada pelo prefeito Antônio Palocci, um dos coordenadores da campanha de Lula. O edital exigia que entre os produtos da cesta constasse um "extrato de tomate peneirado com ervilha". Investigações demonstraram que apenas uma companhia, gaúcha, produzia o tal extrato. Com a licitação suspensa, a prefeitura realizou compras de emergência sem concorrência pública, que também estão sendo investigadas por ordem da Justiça. A empresa que vendeu os produtos fica em Santo André, e há a suspeita de que ela participe de um cartel formado para fraudar licitações em Ribeirão Preto. Em Mato Grosso do Sul, dois secretários do governador Zeca do PT foram acusados de desviar recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador e se demitiram. No Rio Grande do Sul, uma CPI acusou o governador Olívio Dutra de ter sido conivente com um esquema de arrecadação ilegal de fundos para o PT. O Ministério Público de Brasília investiga se o ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque recebeu fundos arrecadados ilegalmente para fazer sua campanha em 1998.
Há uma coisa que faz um caso de corrupção no PT se tornar especial. O partido costuma falar muito alto quando o assunto é maracutaia na casa dos outros. Na semana passada, viu-se que, sob os holofotes, os dirigentes petistas apelam para a desqualificação do trabalho de investigação, estratégia que o PT sempre combateu: "Há nítidos indícios de que a maneira pela qual foi conduzida a investigação em pauta e a divulgação da mesma têm objetivos flagrantemente políticos de macular lideranças do PT e seu presidente nacional, José Dirceu, em um momento em que o Partido dos Trabalhadores se converte na grande alternativa de mudança de que o Brasil necessita". 

Fonte: Revista Veja

22 MILHÕES DE REAIS ATÉ AGORA AMIGOS

Surgem novos contratos suspeitos e a
situação fica mais complicada para o PT


Celso Junior/AE
Beto Barata
Ronan: enriquecimento rápido e contratos milionários nas prefeituras petistasJoão Paulo Cunha e Suplicy: cobrando mais transparência dos companheiros de partido
Apareceram duas novidades na investigação do esquema de cobrança de propina na administração petista da cidade de Santo André. A primeira diz respeito a sua capilaridade. No curso da investigação, o Ministério Público estadual descobriu que o esquema montado não se restringe a Santo André, mas transborda para outras prefeituras – todas do PT. As mesmas empresas que se beneficiam de contratos irregulares na região do ABC paulista mantêm negócios nebulosos em seis prefeituras administradas pelo partido. O dono de uma delas assessora o principal secretário da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, e tem contratos de pelo menos 7 milhões de reais com as prefeituras de Santo André e Belém, também governada pelo PT. A segunda descoberta feita pelos promotores refere-se ao tamanho do desvio. Um levantamento preliminar aponta para a existência de 22 milhões de reais em contratos assinados sem licitação com as várias prefeituras petistas. Eles beneficiam companhias cujos proprietários mantêm fortes laços de amizade com dirigentes do partido.
Os promotores investigam ainda uma possível conexão nacional do dinheiro, apontada pelo médico José Francisco Daniel. Ele é irmão do prefeito petista Celso Daniel, assassinado em janeiro depois de ser seqüestrado. De acordo com José Francisco, parte do dinheiro da propina pode ter ido parar nas mãos de José Dirceu, presidente nacional do partido. Os promotores começaram a compreender como funciona a rede de empresas que participam de esquemas suspeitos em prefeituras do PT. Tome-se o caso da advogada Rosana Glória de Senna, que chefiou o setor de licitações de uma secretaria da prefeitura de Santo André. Sob seu comando, uma companhia chamada Rodvias ganhou contratos sem licitação na prefeitura. A Rodvias é uma das principais empresas investigadas no esquema de propina e tem negócios com várias administrações petistas. Um de seus sócios, Ricardo Pereira da Silva, ocupou vários postos importantes em administrações do PT e hoje trabalha para o secretário de governo da prefeitura de São Paulo, Rui Falcão. Depois que encerrou o trabalho em Santo André, a advogada Rosana foi contratada para chefiar o departamento de compras da Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo. Dias depois, foi nomeada para presidir a comissão que faz as licitações da empresa. Na semana passada, com o vazamento das denúncias, ela pediu afastamento do cargo.
Outra companhia chama a atenção dos promotores. É a Rotedali, de Ronan Maria Pinto. Ele é sócio do melhor amigo do ex-prefeito Celso Daniel, Sérgio Gomes, que estava dirigindo o carro quando o prefeito foi seqüestrado. Ronan possui mais de cinqüenta empresas em seu nome e sócios em paraísos fiscais. Ele tem contratos com pelo menos seis administrações petistas. Os desvios de verba pública em Santo André vêm sendo investigados há muitos meses, e os promotores conseguiram reunir documentos e depoimentos importantes. Um empresário de ônibus local, Luiz Alberto Gabrilli, afirmou ter pago 40.000 reais por mês de propina a pessoas ligadas ao PT. A Câmara Municipal de Santo André aprovou uma CPI para investigar o caso. Na semana passada, Gabrilli confirmou as denúncias aos vereadores, e o irmão de Celso Daniel, também chamado a depor, repetiu as acusações contra José Dirceu.
Há duas investigações em curso envolvendo o PT, e é prudente separá-las bem para não confundir as coisas. Uma é essa, da propina. Ela se refere à ação de uma quadrilha de funcionários públicos, todos ligados ao PT e a Celso Daniel. Eram funcionários da administração de Celso Daniel ou amigos do falecido prefeito e achacavam empresários em Santo André. Eles enriqueciam pessoalmente e, além disso, mantinham um caixa dois que, segundo a denúncia de João Francisco Daniel, financiava campanhas petistas. O caso é investigado pelo Ministério Público estadual. Em virtude das descobertas, os promotores reiteraram o pedido de prisão de seis acusados no esquema de propina no ABC. Um primeiro pedido foi negado pela Justiça.
Há ainda um segundo caso, surgido no curso da investigação da morte do prefeito de Santo André, assassinado em janeiro, depois de ser seqüestrado. O resultado dessa investigação, conduzida pela polícia paulista, terminou com o desmantelamento de uma quadrilha de marginais. Na semana passada, o PT deu entrevistas que promoviam confusão entre os dois casos. Motivo: dirigentes do partido descobriram que agentes da Polícia Federal grampearam alguns líderes petistas durante a investigação do assassinato. O grampo aconteceu e é irregular. Quando vão escutar um telefone, os policiais precisam de autorização judicial. Para obtê-la, devem redigir um pedido informando o motivo da investigação. No documento entregue ao juiz, nada se diz a respeito da morte do prefeito. Informa-se que os números telefônicos devem ser monitorados no curso de uma investigação sobre narcotráfico, o que não faz o menor sentido. O propinoduto e o grampo não têm relação entre si, mas as duas denúncias precisam ser esclarecidas.


A PF E O GRAMPO NO PT


Ed Ferreira/AE
O chefe dos promotores Marrey e Brindeiro: ilegalidades


Na semana passada, após a divulgação do esquema de propina na prefeitura de Santo André, o PT afirmou que líderes do partido na cidade estavam sendo grampeados pela Polícia Federal. Os caciques petistas falaram em golpe político para prejudicar a candidatura presidencial de Lula. Segundo o ministro da Justiça, Miguel Reale, o "objetivo da acusação do PT é desviar a atenção dos escândalos em Santo André". Sabem-se três coisas sobre o grampo. A primeira é que ele realmente foi feito e capturou os telefones de várias pessoas do partido. A segunda é que a investigação do esquema da propina em Santo André não tem nenhuma relação com o grampo. A terceira é que a polícia não usou o expediente de praxe para pedir as gravações. O procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, foi contundente: "A PF agiu de forma ilegal".
Os policiais são obrigados a informar quem desejam grampear, justamente para impedir que um policial mal-intencionado grampeie inocentes. Precisam ainda avisar que a investigação está em curso. Nada disso foi feito. Os policiais disseram ao juiz que investigavam pessoas ligadas ao narcotráfico. O porta-voz deu uma estranha explicação para a desastrosa operação. Garantiu que a PF não sabia de quem eram os números, que tinha apenas uma lista misteriosa feita por um informante anônimo e que recebera a indicação de que os telefones seriam de pessoas ligadas ao assassinato do prefeito Celso Daniel. Como a Polícia Federal estava trabalhando no caso, um delegado achou que a quebra do sigilo da lista misteriosa poderia ajudar. Eis uma história mal contada, que precisa ser esclarecida.


APARECEM AS PROVAS GOROTINHO


Documentos de autoridades suíçascomprovam depósitos dos fiscaisdo Rio suspeitos de corrupção

A descoberta do propinoduto montado bem no topo da máquina de arrecadação do Rio de Janeiro criou uma situação insólita. Os 33,4 milhões de dólares depositados num banco suíço eram, até a semana passada, uma fortuna fabulosa para a qual não havia proprietários disponíveis. Os quatro fiscais da Secretaria de Fazenda do Rio e seus quatro colegas da Receita Federal eram apontados por autoridades suíças como os donos do dinheiro, mas eles insistiam em negar a propriedade da montanha de dólares. Rodrigo Silveirinha, o mais graduado entre eles, chegou a fazê-lo em rede nacional de televisão. Todos argumentavam que não havia prova da existência das contas. Na semana passada, o argumento caiu por terra. O Jornal do Brasil divulgou documentos nos quais o Ministério Público da Suíça mostra que Silveirinha e sua turma são mesmo os titulares das contas abertas no Union Bancaire Privée.
A papelada enviada ao Brasil pelas autoridades suíças mostra mais. Na lista de dezessete beneficiários dos milhões de dólares aparece, além de parentes de Silveirinha e de seus colegas, o nome de três outros auditores da Receita: Roberto Vommaro, Heraldo Braga e Marco Antonio Bonfim da Silva. Na semana passada, VEJA apurou que a ligação entre os servidores envolvidos na trama é, em alguns casos, muito antiga. São amigos de infância, por exemplo, o fiscal de renda do Estado Carlos Eduardo Pereira Ramos – dono de duas contas totalizando 18 milhões de dólares – e o auditor federal Amauri Nogueira. Ambos moravam num subúrbio do Rio quando ingressaram em seus postos, na Receita e na Secretaria de Fazenda. Amauri tornou-se auditor na década de 80. Carlos Eduardo ingressou na Fazenda em 1990. Hoje a dupla está milionária, com direito a casa e apartamento de luxo na Barra da Tijuca. Silveirinha juntou-se ao grupo no fim dos anos 90. Em 1999 foi nomeado pelo ex-governador Anthony Garotinho para a Subsecretaria de Administração Tributária. Logo escolheria Carlos Eduardo para chefiar a importante inspetoria de empresas de grande porte. Amauri, titular da conta mais antiga, de 1989, foi apresentado a Silveirinha por Carlos Eduardo.
O propinoduto fluminense é de grosso calibre, o que explica os fiscais terem amealhado tantos milhões em tão pouco tempo. Só para efeito de comparação, lembre-se o episódio da descoberta do dinheiro no escritório da Lunus, no Maranhão. Na empresa de propriedade de Jorge Murad, marido da ex-governadora Roseana Sarney, foi encontrado 1,3 milhão de reais. A quantia encontrada nas contas dos fiscais cariocas é 90 vezes maior. Mesmo assim, o impacto da descoberta do 1,3 milhão de reais na Lunus foi suficiente para demolir a candidatura do PFL à Presidência da República. No Rio, as conseqüências estão por vir. O escândalo pôs às claras o frágil sistema de controle do Estado sobre sua equipe de fiscalização. Até as luminárias do Palácio Guanabara sabiam, havia tempos, que existia um grupo de fiscais corruptos em atuação. O próprio ex-governador Anthony Garotinho já tinha sido alertado disso em três ocasiões. Mesmo assim, o esquema seguiu sua rotina de extorsões. Comprovada a existência do dinheiro nas contas, o Estado finalmente se pôs a trabalhar para encontrar os responsáveis e punir os culpados. Nesse caso, não há o que contestar no andamento das investigações, que, como se vê pelos documentos apresentados na semana passada, já apontam para o crime de enriquecimento ilícito. O desafio da Polícia Federal e do Ministério Público agora é provar atos de corrupção e descobrir novas ramificações.
Na semana passada, a governadora Rosinha Garotinho determinou o afastamento de todos os fiscais da Fazenda que ocupavam cargo de chefia e criou uma secretaria só para cuidar da arrecadação. Rosinha também baixou decreto exigindo que todo o primeiro escalão do governo e servidores em cargos de direção entreguem cópias de suas declarações de renda dos últimos anos. Esses funcionários terão também de informar se respondem a processos cíveis ou criminais ou se já foram condenados em algum. É um passo importante para apurar os fatos e enfrentar a crise de confiança deflagrada com a descoberta das contas na Suíça. Mas ainda há um longo caminho pela frente. As revelações da última semana mostram que a parte visível do escândalo dos fiscais fluminenses pode ser apenas a ponta do iceberg. 


UM GOVERNO INFESTADO DE GAFANHOTOS



Com dúzias de autoridades e 5.000
cidadãos humildes, Roraima recria
a praga
da corrupção

Malu Gaspar, de Boa Vista
Roberto Jayme
O ex-governador Neudo Campos: a praga começou no seu governo


O governador de Roraima, Flamarion Portela, o único da atual safra de governadores a filiar-se ao PT depois da posse, teve uma discreta audiência com o ministro José Dirceu, no Palácio do Planalto, na noite de quinta-feira passada. Oficialmente, o governador desembarcou em Brasília com três assuntos na bagagem: problemas fundiários, demarcação de terras indígenas e liberação de verbas federais. A parte mais quente da agenda, porém, estava oculta e dizia respeito a um desconcertante desvio de dinheiro público em seu Estado, cujos meandros estão sendo revelados por uma profunda investigação oficial. Com uma economia precária, Roraima responde por apenas 0,1% do PIB brasileiro e sua sobrevivência é garantida por recursos de Brasília, que banca mais de 80% das despesas do Estado. Apesar da penúria, o governo estadual concebeu, implantou e manipulou clandestinamente, por pelo menos cinco anos, uma abusada tecnologia de desfalque na folha salarial do funcionalismo público. Estima-se que o esquema tenha sugado, em média, 70 milhões de reais por ano – uma enormidade, equivalente a mais de 10% do orçamento do Estado – e se tornado epidemia, um caso de corrupção institucionalizada.
O desvio, que está sendo investigado por equipes da Polícia Federal e dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, tinha uma abrangência notável. Entre os 42.000 servidores estaduais, havia 5.000 funcionários "gafanhotos", como se diz no vocabulário local, numa alusão ao inseto que come folhas – no caso, folhas de pagamento. Os gafanhotos tinham o nome incluído na folha do Estado, mas em geral nem sabiam disso, e o grosso do salário deles era embolsado por terceiros. Maria Ivanilde Arruda, 40 anos, era um gafanhoto. No início de 2002, ela pediu ajuda a um deputado estadual. Para ganhar o auxílio financeiro, Ivanilde teve de comparecer a um cartório, acompanhada pelo "pessoal do deputado", e precisou "assinar um papel". Sem saber, virara servidora pública e, ao mesmo tempo, passara uma procuração aos assessores do deputado. No fim do mês, os assessores sacavam o salário de Ivanilde, de 1.000 reais, davam-lhe entre 100 e 200 reais e embolsavam o resto. "Se eu ganhasse 1.000 reais, não tinha passado tanto aperreio", disse ela, ao descobrir o rolo.
Nonato Souza/Folha de Boa de VistaAna Araujo
O governador Flamarion Portela (à esq.), a Amazon, que pagava a gafanhotada, e a fila para o primeiro grande concurso público do Estado
Ana Araujo


Entre os 5.000 gafanhotos, 176 nem moravam em Roraima. Espalhavam-se por dezoito Estados do Brasil. Apesar da quantidade de envolvidos e do espraiamento geográfico, o esquema aparentemente beneficiava um grupo restrito. Até agora, os investigadores examinaram as procurações outorgadas por 1.366 gafanhotos e, surpresos, descobriram que os outorgados formam um grupo reduzidíssimo: sessenta pessoas. Analisando-se quem são, fez-se outra descoberta interessante. A esmagadora maioria dos procuradores era formada por parentes ou funcionários de vinte deputados estaduais, dois dos quais são hoje altos auxiliares de Flamarion Portela e três, conselheiros do Tribunal de Contas do Estado. São esposas, irmãos, filhos, primos, sobrinhos e filhos adotivos, além de secretárias e assessores. O campeão é o deputado estadual Jalser Renier Padilha, 31 anos, que começou a carreira parlamentar como radialista e hoje mora numa das residências mais suntuosas de Boa Vista, com piscina coberta e aquário no chão do quarto. Duas assessoras do jovem deputado detêm procurações de 135 gafanhotos, cujos salários somam 243.000 reais mensais.
O deputado admite que indicava quem lhe pedia ajuda para um emprego público, mas diz que jamais soube das procurações em poder de suas assessoras. "Eu indico as pessoas, e o Estado amadurece a idéia de empregar ou não", diz ele. "Roraima é um Estado muito pobre, não tem outra fonte de receita a não ser a economia do contracheque." A turma ligada ao presidente da Assembléia Legislativa, Antonio Mecias Pereira de Jesus, reúne procurações de 111 gafanhotos, num total salarial de 213.000 reais por mês. Nenhum dos deputados cujos parentes aparecem entre os sessenta procuradores fatura menos de 40.000 reais. Entre os conselheiros do Tribunal de Contas, a maior remuneração é de 51.000 reais mensais – no caso, de procuradores aparentados do conselheiro Henrique Machado, ex-deputado estadual. Apesar do tamanho que já assumiu, com a tomada de 480 depoimentos num único mês, a investigação está longe do fim. Falta abrir cinqüenta caixas de documentos apreendidos na Amazon Service Bank, empresa que, contratada pelo governo estadual, fazia o pagamento aos procuradores dos gafanhotos.
Fotos Ana AraujoAna Araujo
A mansão e seu dono, o deputado Jalser Padilha: 243.000 reais por mês


"A certeza da impunidade era tanta que não houve preocupação em esconder os documentos", afirma o delegado Julio Baida Filho, que preside o inquérito da Polícia Federal. "A fraude está amplamente documentada." Desde o ano passado, quando Neudo Campos governava Roraima, sabia-se da existência de irregularidades na folha salarial, mas o que viera a público era apenas um pequeno pedaço do esquema. Falava-se, na época, que vinte pessoas tinham procuração em nome de pouco mais de 300 servidores e embolsavam, por ano, 7 milhões de reais. As investigações mostram que o negócio era tão mais amplo que ganhou ares de um caso exemplar de espoliação do bem público – em que somente sessenta pessoas, ligadas a duas dúzias de autoridades, engambelam milhares de cidadãos humildes e privatizam um naco respeitável do Erário. São tantos os tentáculos, e tantos os envolvidos para um Estado com apenas 330 000 habitantes, que, nos bares e restaurantes de Boa Vista, é comum flagrar grupos discutindo o assunto – e especulando quem, entre os sentados às mesas vizinhas, pode estar implicado no caso.
Segundo as investigações, a praga começou a infestar o Estado em 1998, às vésperas do ínicio do segundo mandato de Neudo Campos, que autorizava a contratação da gafanhotada indicada por parlamentares. "Admitir funcionários é uma coisa, saber que eles não trabalhavam é outra. Para mim, todos trabalhavam", diz o ex-governador. O vice, na época, era o próprio Flamarion Portela, o atual governador que concorreu ao cargo pelo PSL e, depois de empossado, se bandeou para o PT. Na quarta-feira passada, o governador concordou em receber VEJA em seu gabinete em Boa Vista, mas não apareceu no encontro. Depois disso, a revista voltou a procurar sua assessoria para tentar um novo contato em Boa Vista ou em Brasília, para onde o governador embarcara no meio da semana. Apesar das tentativas, Flamarion Portela não conversou com VEJA. Seu assessor de imprensa, Péricles Peruschi, disse que, na audiência com o ministro José Dirceu, o governador nem sequer tocaria no assunto dos gafanhotos, dado que se trata de uma herança da gestão anterior. "O Flamarion é só um espectador nesse processo", explicou.
Em depoimento prestado ao Ministério Público, Carlos Levischi, diretor do Departamento de Estradas de Rodagem, uma lavoura com 800 gafanhotos, contou que o ex-governador Neudo Campos determinava a cota de gafanhotos de cada deputado estadual, mas, em sua ausência, quem comandava o esquema era o vice, Flamarion Portela. A investigação constatou ainda que, desde abril de 2002, quando Flamarion assumiu o governo na licença eleitoral de Neudo Campos, a gafanhotada não apenas seguiu comendo a folha salarial como até se multiplicou. Em dezembro, a remuneração dos gafanhotos somava 24 milhões de reais, o dobro do início do ano. Além disso, o atual governo nomeou, para cargos importantes, pelo menos quatro pessoas acusadas de envolvimento direto no caso, incluindo aí o atual titular da Secretaria da Fazenda, cargo estratégico na disseminação da praga dos insetos. Agora, depois de um acordo com o Ministério Público, o atual governador está fazendo os primeiros concursos da história de Roraima, e o maior já abriu inscrições para o preenchimento de 8.000 vagas, num procedimento que, se feito com lisura, poderá salvar a lavoura.

VAMPIROS DA SAÚDE NO BRASIL



Polícia descobre gangue que agia
havia catorze anos 
e sugou 2 bilhões
de reais do Ministério da Saúde

Sandra Brasil

Rafael Neddermeyer/AE
Dida Sampaio/AE
O advogado Luiz Cláudio Gomes da Silva, homem de confiança do ministro Costa, é preso pela PF; ao lado, o empresário Lourenço Rommel Peixoto, um dos três foragidos

Durante mais de uma década, um esquema de fraudes instalado no setor de compras do Ministério da Saúde fez sangrar os cofres públicos em mais de 2 bilhões de reais. Depois de sobreviver a doze ministros, o esquema começou finalmente a ruir na semana passada. Em uma ação batizada de Operação Vampiro, a Polícia Federal prendeu catorze pessoas entre empresários, lobistas e funcionários do ministério acusados de, entre outras falcatruas, desviar dinheiro público por meio da manipulação de licitações para compra de hemoderivados – derivados do sangue usados para o tratamento de hemofílicos. Um dos presos é Luiz Cláudio Gomes da Silva, homem de confiança do ministro Humberto Costa e encarregado de tomar conta de um orçamento anual de cerca de 1,5 bilhão de reais. Em sua casa, a polícia apreendeu 120.000 reais, 20.000 dólares e 7.000 euros.
Em um momento em que governo e oposição se preparam para enfrentar-se nas eleições municipais, é natural que surjam tentativas de transformar em escândalo político um caso de polícia. A prisão de Gomes da Silva – levado para a Saúde a convite do ministro Costa – ameaçou respingar no PT. Da mesma forma, o fato de o esquema de fraudes ter sobrevivido a uma dúzia de ministros trouxe imediatamente à tona a lembrança de José Serra, que ocupou com destaque a pasta no governo Fernando Henrique. Tudo leva a crer que a politização de mais um escândalo de corrupção é um equívoco nesse caso. Primeiro, porque nada indica que o ministro Costa tivesse conhecimento de que um de seus funcionários de confiança estivesse engordando a própria conta bancária à custa de dinheiro público: a abertura das investigações que culminaram na prisão dos vampiros ocorreu a pedido do próprio Ministério da Saúde. Os tucanos, por sua vez, também têm um bom argumento para se considerar fora da história. Foi no último ano da gestão de Serra que se criaram condições para que os preços dos hemoderivados começassem a despencar. Até 2002, cada unidade do fator de coagulação VIII – usado por 6.000 dos 8.000 hemofílicos em tratamento na rede pública – era comprada pelo ministério por 42 centavos de dólar. Uma mudança no sistema de compras fez com que, na última compra negociada pelo ministério no governo FHC, o produto fosse adquirido por 16 centavos de dólar.
Desprezadas as (até agora inexistentes) implicações políticas, resta a triste constatação de que a administração federal permaneceu por mais de uma década inerte, vendo escoar pelo ralo uma dinheirama que seria suficiente para erguer mais de dez Tribunais Regionais do Trabalho – o prédio de 169 milhões de reais, superfaturado pela turma do juiz Nicolau – e patrocinar duas gangues como a da advogada Jorgina Maria Fernandes, que, nos anos 90, lesou a Previdência Social por meio de indenizações trabalhistas fraudulentas. Até quando os recursos públicos continuarão a ser sugados por Lalaus e Jorginas?
A erradicação da corrupção é tarefa complexa, mas, como todo processo intrincado, poderia começar a ser feita por medida simples. Uma delas, defendem especialistas, é a redução dos cargos de confiança. "Enquanto houver apadrinhados políticos ocupando o lugar de técnicos, as chances de corrupção sempre serão maiores", afirma o advogado Jair Jaloreto Júnior, especialista em direito penal empresarial. "Grande parte desses apadrinhados não aceita cargos que pagam pouco apenas por patriotismo", diz. Outra medida simples, mas de efeito potente, é a substituição do sistema de licitação pelo de pregão, que, no caso do Ministério da Saúde, foi justamente um dos fatores que ajudaram a reduzir o preço dos hemoderivados. O pregão é uma espécie de leilão ao contrário: o governo procura o fornecedor que irá oferecer-lhe o menor preço. O sistema ganha da licitação em agilidade e transparência. Se uma licitação demora em média quatro meses, o pregão pode ser concluído em três semanas. Em vez de envelopes fechados, sujeitos a violação e adulteração, no pregão representantes das empresas comparecem pessoalmente à disputa e ofertam seus preços de viva voz. Alguns Estados, como São Paulo, já adotaram o pregão eletrônico. Realizado via internet, é considerado ainda mais seguro que a versão tradicional.
Um dos chefes do cartel da Saúde, segundo a Polícia Federal, é o empresário brasiliense Lourenço Rommel Pontes Peixoto. Rommel, dono de dois jornais, um em Brasília e outro no Rio, agia nos bastidores do ministério desde a época do escândalo PC Farias. Neste domingo, seria realizada uma festa em comemoração aos seus 45 anos numa casa às margens do Lago Paranoá, comprada especialmente para passar os fins de semana com a família. Rommel vai ter de se contentar com um bolinho clandestino. Com prisão preventiva decretada, o vampirão, ao lado de outros dois suspeitos, encontra-se foragido.

Eles resistiram a Alceni, Jatene,
Serra, Costa...
Fotos Sérgio Dutti, Orlando Brito e Alcione Ferreira/Folha Imagem
Alceni GuerraAdib JateneJosé SerraHumberto Costa


Desde 1990, quando a quadrilha começou a agir, o Brasil teve doze ministros da Saúde (Adib Jatene em duas gestões), de diferentes partidos. Isso mostra que esse tipo de corrupção não tem coloração política – e também que a falta de controle no governo é doença crônica

VENDE-SE UMA CPI




O caso do deputado que tentou extorquir
4 milhões de reais de Carlos Cachoeira,
oferecendo proteção em uma CPI. 
Seu
azar: os interlocutores gravaram todos
os diálogos


Policarpo Junior


Fotos Ana Araujo
"São quarenta deputados, a 100 cada um, dá 4 milhões. Quando acabar a votação a gente chama os caras. Divide em dois (pagamentos). Na primeira votação, xis. Na segunda votação, o restante."Do deputado André Luiz (foto menor), dizendo quanto custará a Carlos Cachoeira (foto maior) para subornar metade da Assembléia Legislativa do Rio

EXCLUSIVO ON-LINE
Trecho da gravação (em áudio)
Notícias diárias sobre o governo Lula
Durante os últimos sete meses, deputados da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro esmiuçaram os meandros do mais barulhento escândalo do governo Lula – aquele em que Waldomiro Diniz, ex-assessor do ministro José Dirceu, foi flagrado pedindo propina ao empresário Carlos Cachoeira. Nesse período, a CPI ouviu sessenta depoentes, analisou documentos e produziu um relatório de 296 páginas, cuja capa é enfeitada por um desenho festivamente exótico de aviões, mesa de negociações e maços de dinheiro. No relatório, lê-se que a CPI descobriu a existência de crimes de corrupção e formação de quadrilha e pediu a prisão preventiva da dupla Waldomiro Diniz e Carlos Cachoeira. A próxima etapa é submeter o relatório ao plenário da Assembléia Legislativa. Nesses sete meses, em paralelo à investigação, aconteceu uma negociação subterrânea na qual o resultado da CPI, que o público em boa-fé acredita ser sagrado, foi colocado no pano verde por alguns de seus responsáveis. No início, negociou-se a CPI por 1 milhão de dólares. Depois, o preço caiu para 750 000 dólares. Nos últimos tempos, a quantia passou a ser cotada em moeda nacional, mas mesmo assim subiu muito.
– Agora vai custar 4 milhões de reais – exigiu o deputado André Luiz, do PMDB do Rio de Janeiro, numa conversa na noite de 16 de setembro, em sua residência no Lago Sul, bairro nobre de Brasília. O deputado André Luiz estava à vontade. Vestia bermuda e camiseta e calçava um par de chinelos. A conversa deu-se na sala de televisão, onde a peça de decoração que mais chama atenção é um tapete branco com cara de urso. Era noite alta, a televisão exibia o programa Linha Direta, da Rede Globo, e o volume estava excessivamente alto, pois o deputado parecia querer evitar que qualquer microfone captasse a conversa. Seu interlocutor, porém, era o publicitário Alexandre Chaves, sócio de Carlos Cachoeira, que registrou tudo com um gravador digital escondido no bolso do paletó. "Meu objetivo era reunir provas de que estávamos sendo vítimas de uma tentativa de extorsão", explica Alexandre Chaves. Na conversa, o publicitário quis saber a razão do aumento para 4 milhões de reais. Sem constrangimento, o deputado André Luiz explicou que, agora, o relatório da CPI será examinado no plenário da Assembléia e, para mudá-lo, será preciso obter a maioria dos votos de um total de setenta deputados.

Ana Araujo
A casa do deputado André Luiz no Lago Sul, em Brasília: ali, bem à vontade, de bermuda e camiseta, o parlamentar pediu 4 milhões de reais

– São quarenta deputados a 100 cada um. Dá 4 milhões.
É antiga a suspeita de que algumas CPIs degeneram em gazuas para parlamentares desonestos, que as usam para chantagear e extorquir suspeitos. Mas é a primeira vez que se revelam os bastidores de uma negociação entre deputados e suas vítimas para moldar o resultado de um inquérito parlamentar. Nas últimas oito semanas, VEJA apurou o caso e trouxe à tona uma transação minuciosa e despudorada, na qual se fala desinibidamente de corrupção. A revista teve acesso a mais de cinco horas de gravações feitas por emissários de Carlos Cachoeira, que negociaram o preço da extorsão com o deputado federal André Luiz e o deputado estadual Alessandro Calazans, do Partido Verde, presidente da CPI na Assembléia do Rio. Além das gravações, VEJA entrevistou acusadores e acusados. A soma de entrevistas e gravações desnuda uma história que compromete deputados estaduais e um federal que mantêm laços políticos com o ex-governador Anthony Garotinho e abre algumas conexões estranhas com o Palácio do Planalto em Brasília – especificamente, com a Casa Civil, comandada pelo ministro José Dirceu. 

Fabio Motta/AE
Bruno Stuckert/Folha Imagem
Marcelo Sereno (à esq.) e Waldomiro Diniz, que foram colegas de trabalho na Casa Civil: Sereno nem chegou a ser chamado a depor

As abordagens do deputado André Luiz começaram uma semana depois da instalação da CPI na Assembléia do Rio, em março passado. Seu bote inicial foi no advogado Celso d'Ávila, que trabalhava para Carlos Cachoeira e já foi sócio de um escritório com o ex-ministro Maurício Corrêa, do Supremo Tribunal Federal. O deputado telefonou para o advogado e convidou-o a ir à sua casa no Lago Sul. Na conversa, foi direto ao assunto. Disse que a CPI recém-instalada seria muito dura com Cachoeira, mas que seus amigos poderiam evitar que o nome do empresário aparecesse no rol dos indiciados no relatório final. O preço para tanto: 1 milhão de dólares. A certa altura, enquanto o deputado e o advogado conversavam, outro personagem apareceu na sala. Era o deputado Alessandro Calazans, presidente da CPI. "Sempre que Calazans vem a Brasília, ele dorme aqui na minha casa", explicou André Luiz, querendo, na verdade, certificar o advogado de que tinha tanto poder sobre a CPI que até hospedava seu presidente. "Meu advogado me relatou a conversa, disse que era uma tentativa de extorsão e que não negociássemos nada", conta Cachoeira.
Desse momento em diante, a transação passou por diversas etapas. Querendo recolher evidências da extorsão, os emissários de Cachoeira se empenharam em simular interesse na negociação. Regatearam o preço. Conseguiram reduzir a mordida para 750.000 dólares, equivalente a 2,2 milhões de reais. Mas, como não houve pagamento, o relatório final saído da CPI acabou pedindo a prisão preventiva de Cachoeira. Agora, prestes a ser submetido ao plenário, o preço voltou a subir para 4 milhões de reais. "Vocês vacilaram muito", advertiu André Luiz numa conversa com emissários de Cachoeira. "Antes, era 1 milhão de dólares, 3 milhões de reais..." Na conversa de 16 de setembro, André Luiz explica que nem todos os deputados recebem a mesma quantia. É 100.000 reais por cabeça em média. Conforme a versão que ele deu ao pessoal de Cachoeira, os presidentes de comissão e líderes de bancada, por exemplo, ganham um pouco mais. Os que se limitam a votar como quer o comprador recebem um pouco menos. A divisão desigual não costuma gerar desavença. "É tudo fácil. Não tem nada difícil ali", comentou André Luiz, que já exerceu dois mandatos de deputado estadual. 

Ricardo Leoni/Ag. O Globo
Ana Araujo
Deputado Picciani (à esq.), presidente da Assembléia do Rio, e Bispo Rodrigues, que soube de tudo e denunciou a extorsão

O deputado André Luiz foi a detalhes. "Quando acabar a votação a gente chama os caras. Divide em dois (pagamentos). Na primeira votação, xis. Na segunda votação, o restante." André Luiz informa que o pagamento poderia ser feito no gabinete da deputada estadual Eliana Ribeiro, do PMDB, sua esposa. Para chegar aos quarenta deputados que teriam de ser remunerados, André Luiz explica que algum dinheiro também precisa ser destinado aos deputados que vão anunciar voto contrário. A encenação é assim: eles votam contra, fazem barulho, satisfazem suas bases, mas são remunerados por baixo do pano para que estejam no plenário garantindo quórum mínimo. "Quem vota contra ganha um pouquinho menos", contabiliza André Luiz. Para tranqüilizar seu interlocutor, ele promete que, na hora certa, deixará Brasília e desembarcará no Rio para acompanhar a votação. "Vou sentar no gabinete da minha esposa e ficar manipulando as coisas, chamando fulano, sicrano."
No curso das negociações, André Luiz contou aos homens de Cachoeira que o presidente da Assembléia Legislativa do Rio, o deputado Jorge Picciani, do PMDB, também participa do esquema, mas tem mais interesses na área federal. Explicou que, devido aos interesses federais de Picciani, a CPI logo arrolou dois personagens para ouvir. Um era Rogério Buratti, ex-secretário do ex-prefeito Antonio Palocci e acusado de pedir propina a uma multinacional para intermediar um contrato com a Caixa Econômica Federal. Buratti chegou a ser convocado para depor na CPI, não apareceu e nunca ninguém reclamou. O outro personagem era Marcelo Sereno, que fora colega de Waldomiro Diniz e, na época, ainda trabalhava na Casa Civil. "Picciani sabe que o Marcelo Sereno era caixa do PT no Rio e, se aproveitando disso, negociou cargos para que ele não fosse convocado", explicou André Luiz, numa conversa na manhã do dia 17 de setembro, em Brasília. O nome de Marcelo Sereno apareceu no rol dos indiciados, mas acabou sumindo depois de uma sessão secreta da CPI. "Picciani não tem nenhum cargo no governo federal", garantiu Marcelo Sereno.
A idéia de propor a convocação de Marcelo Sereno foi apresentada pelo deputado estadual Paulo Ramos, do PDT. "O Picciani foi quem mandou o Paulo Ramos pedir a convocação", contou André Luiz. Mas, numa sessão secreta, realizada em 31 de março, o requerimento foi indeferido de goleada – 9 votos contra 1. "Logo depois disso houve duas nomeações negociadas diretamente com a Casa Civil. Uma para um fundo de pensão e outra numa estatal", detalha André Luiz. A próxima bala de Picciani parece já ter sido colocada na agulha. O Supremo Tribunal Federal autorizou a CPI a quebrar o sigilo bancário de Waldomiro Diniz. Picciani, de acordo com os comentários de André Luiz feitos durante uma conversa gravada, estaria esfregando as mãos para trabalhar com a ameaça de vasculhar as contas bancárias do ex-assessor do ministro José Dirceu. "O Waldomiro era um dos caixas do José Dirceu, todos sabem disso, Picciani sabe."
Apesar das evidências de que o deputado André Luiz tinha ascendência sobre os deputados estaduais envolvidos na CPI, os emissários de Cachoeira resolveram pedir provas concretas de seu poder de entregar a mercadoria que estava oferecendo. Pediram três coisas: que o depoimento de Cachoeira fosse tomado em Goiânia, e não no Rio; que duas testemunhas escolhidas por Cachoeira fossem convocadas para depor na CPI; e que uma lista de perguntas, previamente preparadas por Cachoeira, fosse feita às testemunhas durante o depoimento. André Luiz então provou que realmente mandava no pedaço. No dia 5 de abril passado, os membros da CPI desembarcaram em Goiânia para tomar o depoimento de Cachoeira. As duas testemunhas indicadas foram devidamente convocadas. Uma delas, Messias Ribeiro Neto, ex-sócio de Cachoeira, depôs em 30 de março. A outra, Carlos Martins, um empresário em Goiás, compareceu à CPI em 20 de maio. E as cerca de quinze perguntas redigidas pelos advogados de Cachoeira foram integralmente formuladas às testemunhas por membros da CPI.
Houve um momento em que a negociação pareceu correr o risco de desandar. O deputado federal Bispo Rodrigues, do PL do Rio, soube dos achaques no âmbito da CPI e resolveu denunciar. Em conversa com Picciani, seu amigo e presidente da Assembléia, o deputado Bispo Rodrigues contou o que sabia. Picciani comentou que o deputado André Luiz "vivia fazendo isso" quando tinha mandato na Assembléia Legislativa. "Ainda bem que ele foi para Brasília", disse. Passaram-se duas semanas e nada. Bispo Rodrigues voltou a Picciani para reforçar a denúncia e seu pedido de providências. De novo, nada. "Fiz o que minha consciência mandou. Não quero mais falar sobre esse assunto", disse a VEJA o deputado Bispo Rodrigues. Em Brasília, o deputado André Luiz soube da denúncia de Bispo Rodrigues graças à amizade com Picciani. "Picciani me disse que o bispo esteve com ele. O bispo contou tudo. Imagina se o Picciani não fosse meu irmão, meu parceiro. Se é outra pessoa, essa p.... tinha explodido para a imprensa", disse ele, na conversa de 17 de setembro. "Nós formamos um grupo só: Sérgio Cabral, Picciani, eu, Calazans, Paulo Melo." Referia-se ao senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) e aos deputados Picciani, presidente da Assembléia, Alessandro Calazans, que preside a CPI, e Paulo Melo, relator da CPI.
Numa negociação, não é incomum que o vendedor, no afã de parecer merecedor do dinheiro e da confiança de seu interlocutor, acabe garganteando vantagens que não tem. Pode ser que, no incontido desejo de colocar a mão no dinheiro, o deputado André Luiz tenha inventado que participa de um grupo influente. As relações entre eles são inequívocas. Em suas viagens a Brasília, os deputados Alessandro Calazans e Paulo Melo costumam ficar hospedados na residência de André Luiz.
– Vamos fechar 100 agora e 100 depois.
A frase acima apareceu no último encontro entre André Luiz e auxiliares de Cachoeira. Foi no dia 6 de outubro passado, à tarde, no gabinete do deputado. André Luiz estava nervoso. Seu filho, conhecido como Andrezinho, candidato a vereador no Rio, perdera a eleição por apenas 1 000 votos e sua campanha deixara dívidas na praça. Em meio ao nervosismo, o deputado André Luiz contou que estava marcado o encontro com Calazans para concluir a negociação dos 4 milhões de reais e retirar o pedido de prisão preventiva de Cachoeira do relatório da CPI – mas exigiu que, desta vez, antes de qualquer movimento, fosse feito um adiantamento de 200.000 reais, com metade à vista e metade depois da reunião. "Estou precisando resolver um negócio", disse ele, referindo-se às dívidas de campanha do filho. "Preciso de 100.000 de pronto. Essa é a minha proposta." Em tom nervoso, despachou uma ameaça a Cachoeira. "Se ele não aceitar, vai perder muito mais do que isso."
A biografia de André Luiz já se cruzou antes com episódios semelhantes. Como atuante membro da Comissão de Defesa do Consumidor na Câmara Federal, André Luiz conseguiu aprovar a convocação de todos os presidentes de empresas de telefonia. Dias depois dessa decisão, as companhias começaram a ser vítimas de achaque. Os rumores de que por trás das tentativas de extorsão estava o deputado André Luiz chegaram ao presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha, e ao então líder do PMDB, deputado Eunício Oliveira. Por precaução, Eunício afastou André Luiz da comissão do consumidor, mas o deputado conseguiu voltar a integrá-la mais tarde. Os deputados cujas vozes aparecem nas gravações foram ouvidos por VEJA. Por meio de uma nota, Jorge Picciani, presidente da Assembléia, desmente que tenha sido alertado por Bispo Rodrigues de que membros da CPI estavam se envolvendo em corrupção. "Isso é uma piada. O relatório não protege Cachoeira. Agora, se o André Luiz tomou dinheiro de alguém não tenho nada a ver com isso", reagiu Alessandro Calazans, presidente da CPI. O principal protagonista das fitas, o deputado federal André Luiz, fez sua defesa: "Eu estou em Brasília. Não tenho nada a ver com a Assembléia do Rio. Faz muito tempo que não falo com o Picciani. Ele está ligado ao Garotinho. Eu, ao governo federal". As fitas a que a revista teve acesso foram periciadas e sua autenticidade confirmada.

"Picciani foi quem mandou convocar(Marcelo Sereno). Logo depois disso,houve duas nomeações negociadasdiretamente com a Casa Civil."Do deputado André Luiz, ao comentar que JorgePicciani, presidente da Assembléia do Rio, fez pressão na área federal
"Imagina se o Picciani não fosse meu irmão, meuparceiro. Se é outra pessoa, essa p... tinha explodidopara a imprensa."
Do deputado André Luiz, festejando o fato de Bispo Rodrigues tê-lo denunciado justamente para seu amigo Picciani

"Logo depois do primeiro turno das eleições, vou marcar uma reunião no escritório. Vou chamar o Calazans (presidente da CPI). Ele vai ajudar."Do deputado André Luiz, agendando encontro com emissário de Cachoeira para negociar pagamento de 4 milhões de reais

UM PT COM FICHA SUJA NA POLÍCIA



Prefeito é preso por corrupção e governadoré cassado, mas o partido não se constrange

Malu Gaspar

Joedson Alves/AE
FLAMARION PORTELA
EX-GOVERNADOR DE RORAIMA
• Abuso do poder político e econômicona campanha eleitoral
• Crimes contra a administração pública
• Crimes contra as finanças públicas
• Crime contra o patrimônio,estelionato e peculato


Fontes: TSE e STJ


O prefeito de Macapá, João Henrique Pimentel, é um neopetista com pedigree. Reelegeu-se prefeito em outubro, disputando pelo PT pela primeira vez, mas seu currículo traz a informação de que participou da fundação do partido no Pará. Na semana passada, ele foi preso, acusado, entre outras coisas, de participar de um curioso esquema de manipulação de licitações públicas que beneficiava empreiteiras. Como está virando rotina no combate à corrupção, foi flagrado pela boca em grampos telefônicos autorizados judicialmente. O prefeito aparece em diálogos combinando com empresários detalhes para a confecção de editais e pedindo dinheiro. Segundo a Polícia Federal, a intimidade entre Pimentel e alguns empresários era tamanha que ele chega a ofertar a um deles seu carro com defeitos. Conseguiu fazer um negócio ainda melhor. "Você anda detonando a gente, mas eu pago!", afirma na gravação o empresário Luiz Eduardo Pinheiro Corrêa, dono da Método Norte Engenharia. O carro estragado, como ele diz nas conversas, não só foi comprado pelo empresário como o prefeito ainda ganhou outro novinho, retirado diretamente da concessionária do interlocutor.
Desde que assumiu o poder, o PT está sendo obrigado a conviver com o que passou a vida toda denunciando. Petista preso por corrupção, além de não ser nenhuma novidade, nem enrubesce mais os dirigentes. "Ele me garante que é inocente. Então vamos esperar um pouco", pondera o presidente do partido, José Genoíno. Ao saber que tivera a prisão decretada, João Henrique ligou para Genoíno e foi aconselhado a se apresentar à polícia. A PF informa que o prefeito de Macapá ajudou a fraudar obras e desviar recursos em pelo menos três casos: na construção de um hospital para cancerosos, na construção de uma creche e na recuperação de um canal. As três obras estão sendo realizadas pela mesma empreiteira, a Método Norte, que possuiu outros dezesseis contratos investigados no estado. Juntos eles somam 30 milhões de reais. Horas depois da prisão de João Henrique, o Tribunal Superior Eleitoral cassou em definitivo o mandato do governador de Roraima, Flamarion Portela, outro neopetista. Ele foi condenado por usar a máquina pública para fins eleitorais. 
JOÃO HENRIQUE
PREFEITO DE MACAPÁ
• Crime de responsabilidade• Fraude em licitação
• Desvio de recursos públicos
• Corrupção passiva e ativa
• Formação de quadrilha
Fonte: inquérito da PF


Sem mandato, a vida do ex-governador tende a se complicar. Flamarion é apontado pela Polícia Federal como um dos líderes de um descarado esquema de desvio de dinheiro público em Roraima, que ficou conhecido como o escândalo dos gafanhotos. A fraude começou quando Flamarion era vice-governador e pertencia a um tal Partido Social Liberal, e continuou até depois de sua posse como governador eleito, em 2003, já filiado ao PT. Mais de 5 000 servidores fantasmas foram contratados nesse período. Esses servidores cediam, por procuração, seus salários a deputados e pessoas ligadas ao governo. As investigações da PF mostram que Flamarion se beneficiava politicamente do esquema, que conhecia em detalhes. O golpe foi descoberto no fim do ano passado. Indiciado por crime contra as finanças públicas, estelionato e peculato, o neopetista pediu licença do partido. "Temos de estar preparados para que existam filiados sendo presos ou acusados de crimes", disse José Genoíno. "Se algum filiado estiver envolvido, tomaremos as providências."

O MC DONALD'S FRAUDE


Documentos inéditos comprovam que o McDonald's, a maior cadeia de fast-food
do Brasil e do mundo, pagou 5 milhões
de reais por uma norma da Receita Federal, configurando um caso raríssimo no universo
da corrupção: o pagamento da propina
teve até nota fiscal

Policarpo Junior 

A FALSIFICAÇÃO DAS NOTAS
Acima, as duas notas fiscais emitidas pelo McDonald's. A da esquerda é a versão verdadeira, na qual se pode ler, numa descrição manuscrita, que o motivo do pagamento de 3,7 milhões de reais era uma "consultoria sobre dedutibilidade de royalties". A nota da direita é uma fraude. Tem carimbo de cartório e selo de autenticidade, mas foi adulterada: por meio digital, a observação manuscrita da natureza do serviço, que aparece na versão verdadeira, foi eliminada. As duas versões da nota foram entregues aos investigadores da Receita pelo McDonald's. A falsa apareceu no fim de 2004, ainda no início das investigações, quando a empresa parecia disposta a ocultar a fraude. A verdadeira surgiu em setembro passado, quando o McDonald's, aparentemente, resolveu abrir o jogo, talvez com o intuito de evitar que o caso chegue aos EUA, país que pune com rigor as empresas cujas filiais no exterior se metem em maracutaias


O McDonald's, a maior rede de fast-food do Brasil e do mundo, está no centro de um dos casos mais explícitos de corrupção dos últimos tempos – e os últimos tempos, como se sabe, têm sido pródigos na exibição das entranhas de roubalheiras diversas. Há dois anos, a filial brasileira do McDonald's está sob investigação devido à suspeita de ter comprado uma norma da Receita Federal, que permitiria à multinacional pagar menos imposto e livrar-se de multas milionárias. A norma saiu, foi publicada em 26 de fevereiro de 2002 e, como previsto, proporcionou ao McDonald's uma economia imediata da ordem de 100 milhões de reais. Até aqui, no entanto, a operação poderia ser apenas um caso de lobby bem-sucedido na Receita Federal, mas agora se sabe que foi um caso clássico de suborno. VEJA teve acesso a documentos inéditos cujo conteúdo comprova que o McDonald's pagou 5 milhões de reais pela norma tributária e, para ocultar a operação, falsificou uma nota fiscal. Ao lado estão as duas versões da nota – e, na verdadeira, está didaticamente descrito que o serviço prestado referia-se à "dedutibilidade de royalties". Na versão falsa, a descrição foi suprimida por meio digital.
Um relatório sigiloso produzido pela corregedoria da própria Receita Federal, ao qual VEJA também teve acesso, refaz o caminho de uma parte do suborno de 5 milhões de reais. Ali, informa-se que o McDonald's fez três pagamentos, que totalizam os 5 milhões de reais, em favor de uma consultoria de Brasília, a RPN. A maior parcela, de 3,7 milhões de reais, foi paga em 8 de março de 2002, apenas dez dias depois que a norma tributária almejada pelo McDonald's saíra no Diário Oficial da União. Ao receber a bolada de 3,7 milhões de reais, a RPN repassou 1,5 milhão para outra consultoria, a Martins Carneiro, também de Brasília. A Martins Carneiro é uma sociedade entre dois especialistas em questões tributárias: Paulo Baltazar Carneiro e Sandro Martins. Na época em que o pagamento foi feito, em março de 2002, Baltazar Carneiro já estava aposentado como auditor da Receita. Sandro Martins ainda se encontrava na ativa. Era assessor especial do então secretário da Receita, Everardo Maciel. Chegou a ocupar cargo parecido na gestão atual, de Jorge Rachid, mas foi removido para um posto menor depois que, há dois anos, começaram as investigações. 
Paulo Giandalia/Valor/Ag. O Globo
UM DOS DEGOLADOS
Marcel Fleischmann, afastado do comando da empresa no curso das investigações



Resta um mistério: já se sabe que 1,5 milhão de reais foram parar no bolso da dupla de fiscais, mas os 3,5 milhões que sobram não ficaram na conta da RPN – cujo proprietário, Jone Perdigão Nogueira, morreu de câncer no curso das investigações. Os 3,5 milhões de reais foram sacados na boca do caixa, em dinheiro vivo, numa transação absolutamente atípica pelo volume de recursos. Os investigadores estão empenhados, neste momento, em tentar descobrir o rastro do restante do dinheiro e saber se havia outros envolvidos no caso dentro da Receita Federal. O pedido para que fosse editada a norma tributária de interesse do McDonald's andou com celeridade pela burocracia da Receita. Foi apresentado em outubro de 2001, em nome da Associação Brasileira de Franchising, mas fora redigido pelo McDonald's. Solicitava que o pagamento de royalties pudesse ser integralmente descontado do imposto de renda, mas, se isso não fosse possível, pleiteava que a dedução no IR aumentasse de 1% para 5%. Fiscais consideravam que o limite de dedução era de apenas 1%. O McDonald's ultrapassou esse limite e, em alguns casos, chegou a deduzir até 10% do total de royalties em seu IR.
O pleito foi protocolado no próprio gabinete do então secretário da Receita, Everardo Maciel. De lá, seguiu para um órgão interno encarregado de analisar o assunto, recebeu parecer favorável e, no dia 22 de fevereiro de 2002, já estava de volta à mesa de Everardo Maciel. Foi assinado no mesmo dia e, quatro dias depois, a nova norma já estava publicada no Diário Oficial. Em seguida, o McDonald's entrou com um recurso pedindo a anulação das multas que vinha recebendo em razão de dedução irregular de royalties no IR. O recurso ainda não foi julgado. A rapidez da edição da norma despertou suspeitas na corregedoria da Receita, mas o que de fato chamou a atenção dos investigadores foi a descoberta de que, dez dias após a publicação da nova norma, o McDonald's pagou 3,7 milhões de reais à consultoria RPN, que, por sua vez, repassou, três dias depois, 1,5 milhão de reais à Martins Carneiro. Desconfiados de que a cronologia de pagamentos pudesse esconder uma operação escusa, os investigadores começaram a apurar o caso. Seguiu-se então um festival de mentiras.
Os diretores do McDonald's informaram que a RPN fora contratada informalmente, sem documento assinado, mas não souberam dizer para qual serviço. O então presidente da empresa, Marcel Fleischmann, garantiu até que esse tipo de contrato – informal e aéreo – era praxe da casa. Como prova, o McDonald's apresentou uma nota fiscal na qual pagava 3,7 milhões de reais à RPN por uma "assessoria empresarial". A nota tinha carimbo de cartório e selo de autenticação. Parecia tudo certo. Jone Perdigão, da RPN, confirmou a versão do McDonald's e explicou o repasse de 1,5 milhão de reais à Martins Carneiro. Disse que contratara Baltazar Carneiro e Sandro Martins para dar palestras aos seus clientes sobre questões tributárias. Aí, a mentira começou a ruir. Primeiro porque 1,5 milhão por palestras é uma exorbitância. Segundo: a RPN tinha só cinco clientes – e cada palestra sairia então por 300.000 reais. Terceiro: dos clientes da RPN, só o McDonald's disse que fora convidado para uma palestra, mas o diretor não pôde comparecer. Os demais clientes da RPN afirmaram que nunca tinham ouvido falar no assunto.
O dado decisivo para o rumo das investigações, no entanto, apareceu neste ano: uma testemunha-chave, que trabalhou no McDonald's, resolveu falar, desde que sua identidade fosse mantida em sigilo. Contou que havia um contrato – secreto – entre McDonald's e RPN e que, ali, ficava claro que a consultoria se destinava a obter o aumento da dedução de royalties no imposto de renda. Disse que, além desse, havia outros documentos narrando etapas da operação. Com isso, os investigadores requisitaram à multinacional novos documentos sobre o caso. Em setembro passado, sobreveio a grande surpresa. O McDonald's, parecendo decidido a revelar tudo, entregou documentos devastadores. No bolo, veio a versão verdadeira da nota fiscal, mostrando que a RPN realmente fora contratada para trabalhar em favor da norma tributária. Também veio o contrato firmado entre o McDonald's e a RPN, clareando mais a situação, mas com uma peculiaridade: o contrato foi exibido com uma página a menos, que, segundo a empresa, simplesmente sumiu. 
O ESQUEMA DOCUMENTADO 
Nos fac-símiles acima, que estavam nos arquivos do McDonald's, constata-se que a empresa queria aumentar a dedução de royalties de 1% para 5% e previa pagar 3 milhões de reais, caso tivesse êxito em seu pleito. A investigação descobriu quem recebeu o dinheiro



O documento mais contundente estava arquivado nos computadores da sede da filial brasileira do McDonald's, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. Trata-se de uma planilha de acompanhamento dos interesses da empresa. Classificado como "confidencial", o documento detalha e enumera custos e benefícios dos projetos prioritários. Um deles, que recebeu o código "projeto 1.2 – aprovação de dedutibilidade dos royalties", mostra que o McDonald's realmente pleiteava a edição de uma portaria na Receita Federal que lhe daria o "benefício direto" de aumentar a dedução dos royalties no imposto de renda e traria "benefícios indiretos". No rol dos benefícios indiretos, a planilha do McDonald's diz que a nova norma, se fosse aprovada, daria "suporte para defesa dos autos de infrações em torno de 70 milhões de reais" e ainda promoveria o "fim das fiscalizações e autuações dos franqueados". A mesma planilha informava até o valor do "investimento". Está escrito que a empresa pagaria 3 milhões de reais – "mais os tributos de 20%", esclarecia – caso a norma fosse editada pela Receita (veja fac-símiles)
É uma incógnita a razão que levou a direção da rede de lanchonetes a fornecer aos investigadores informações tão cristalinas de seu próprio envolvimento com uma operação ilegal. O McDonald's chegou a se dar ao trabalho de informar que sua direção anterior fora demitida por "justa causa", embora não tenha dado maiores detalhes do que isso significa exatamente. Os demitidos foram: Marcel Fleischmann, que deixou de ser o presidente da filial brasileira da rede; Jadir Araújo, que foi afastado do posto de vice-presidente executivo; e Eduardo Mortari Junior, que perdeu o cargo de vice-presidente financeiro. Especula-se que a empresa tenha preferido dar as provas de um crime para, com isso, deixar subentendido que toda a maracutaia fora concebida e patrocinada pelos dirigentes brasileiros – agora devidamente demitidos – e assim não comprometer a direção do McDonald's nos Estados Unidos. A idéia de circunscrever o escândalo às fronteiras brasileiras pode ser uma forma de reduzir as punições tanto para os envolvidos como para a própria empresa. Como o Brasil é a terra da impunidade, tudo poderá ainda acabar em pizza. 
Raimundo Pacco/CB
O AUDITOR FISCAL APOSENTADO
Paulo Baltazar Carneiro, sócio da empresa que recebeu 1,5 milhão de reais: sustentando a versão das palestras-fantasma e milionárias



Nos Estados Unidos, no entanto, a situação é muito diferente. A legislação americana é rigorosa com as suas empresas cujas filiais se envolvem em atos de corrupção no exterior. Em meados da década de 70, começaram a pipocar denúncias sobre pagamento de propinas por empresas de petróleo americanas a autoridades do Japão, da Holanda e da Itália. Na época, descobriu-se que mais de 400 empresas americanas haviam feito pagamentos duvidosos no exterior. Em 1977, criou-se então uma lei que pune esse tipo de crime com multa ou prisão. Até 2001, 21 empresas e 26 empresários foram punidos. Em 1994, um executivo da General Electric foi condenado a passar 84 meses na prisão por violar a lei. Nos últimos três anos, o rigor ficou ainda maior, com a edição da lei conhecida como Sarbanes-Oxley, aprovada na esteira do escândalo Enron, a gigante americana do setor de energia, flagrada num mar de fraudes contábeis. A Sarbanes-Oxley baixou normas rigorosas para evitar esse tipo de irregularidade – e, ao fazê-lo, reduziu a margem para o pagamento de propinas e a formação de caixa dois.
Pela nova lei, quem frauda um balanço pode pegar até vinte anos de prisão, além de multa de mais de 5 milhões de dólares, nos Estados Unidos. Como se vê, para o McDonald's, seria excelente evitar que o escândalo ultrapassasse as fronteiras do país da pizza. Os três diretores demitidos da empresa, que poderiam eventualmente contar se a matriz americana estava ou não a par das traquinagens feitas por aqui, não estão dispostos a falar. Na semana passada, eles foram procurados por VEJA, mas preferiram manter silêncio. A direção do McDonald's mandou uma nota à revista na qual diz que "não tem condições de se manifestar sobre uma investigação que corre em sigilo na corregedoria da Receita Federal e também considera inapropriado comentar assuntos que estejam sub judice". Os dois auditores fiscais, Baltazar Carneiro e Sandro Martins, alegam que o 1,5 milhão de reais que receberam foi, mesmo, para dar palestras – as tais que, além de milionárias, são fantasmas. O ex-secretário da Receita Everardo Maciel diz que a edição da norma aumentando a dedução de royalties foi amparada na lei. E afirma: "Se houve alguma coisa errada no processo, aconteceu longe do meu gabinete".