quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

BRASIL CHORA MORTE DE IRMÃOS



Santa Maria tenta voltar à vida

Período de maior risco para os sobreviventes terminou na madrugada desta quarta-feira. Comércio ainda não conseguiu voltar ao normal, com o luto e a ausência de funcionários

Marcela Donini e Luís Bulcão, de Santa Maria
Passeata de moradores de Santa Maria pede punição aos responsáveis pelo incêndio na boate Kiss
Passeata de moradores de Santa Maria pede punição aos responsáveis pelo incêndio na boate Kiss - Lauro Alves/Agência RBS
Não há, em Santa Maria, uma só pessoa capaz de afirmar que não tenha sofrido o impacto doincêndio na boate Kiss. Nas ruas, todos sabem apontar alguém próximo, às vezes da família, em alguns casos vários amigos de longa data, que tenha entrado para a mórbida contagem de corpos da madrugada do dia 27. Todos buscam, agora, forças para fazer a vida continuar. Mas as dimensões e os detalhes da tragédia – que levou 235 jovens em alguns minutos – tornam mais difícil o recomeço. "Para cada loja que a gente olha, sabe que tá faltando alguém", lamenta Patrícia Parente, de 33 anos, dona do quiosque de doces Ora Pois, que fica no corredor do segundo piso do shopping, em frente a outros três estabelecimentos que perderam empregados. "Abrimos a loja na segunda, mas não teve clima, acabamos fechando antes do horário", conta a empresária.

Vendedora do quiosque, Priscylla Portela consolava as colegas que iam chegando por ali e não falavam em outra coisa que não fosse o incêndio. Com movimento ainda fraco, os funcionários se permitiam ir de loja em loja desabafar com os amigos. Muitos deles eram frequentadores da Kiss, mas como teriam de trabalhar no domingo, evitaram a festa de sábado.

As Lojas Americanas mantiveram as portas fechadas no domingo e na segunda-feira, em respeito aos seus quatro funcionários mortos e outro que ainda está internado, em Porto Alegre. O gerente, Sabino Antunes, que estava de férias na capital gaúcha no momento do incêndio, voltou a Santa Maria para apoiar os familiares das vítimas e reassumir o estabelecimento. Na sua ausência, era o supervisor comercial Odomar Gonzaga Noronha que coordenava a equipe. Ele, Neiva Carina de Oliveira Marin, Paola Porto Rodrigues Costa e Sandra Victorino Goulart - falecidos - estavam na festa com Jean Carlo Rosa de Oliveira, que agora está internado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, ainda em estado grave.

No cinema Arcoplex, os funcionários ainda se reorganizam nas suas funções para dar conta da falta de Marilene Iensen Castro e Fernando Parcianello. Além de ter de lidar com as duas mortes, lamentavam a internação de uma colega que, ao saber do ocorrido, passou mal. A Renner também só reabriu na terça à tarde, perdeu duas funcionárias: Viviane Tólio Soares e Kelen Aline Karsten Favarin. "As duas estavam sempre juntas, eram muito amigas. Tanto que quando acharam o corpo da primeira, sabíamos que não demoraria pra achar a outra, infelizmente", disse a supervisora Eloina Montagner.

Na madrugada desta terça-feira, por volta das 3h da manhã, o incêndio na boate Kiss completou 72 horas. O período representa o fim de um prazo em que a maior parte dos sobreviventes correu risco ainda alto de morte. A partir de agora, é menos provável que alguma vítima venha a apresentar algum sintoma da intoxicação respiratória decorrente da inalação da fumaça. Não é necessariamente um alívio. Mais de 70 continuam em estado grave.
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Solidariedade – Ainda em meio a tanto sofrimento, Santa Maria parece ter algo a dizer. A marcha branca e silenciosa que percorreu as ruas da cidade na noite de segunda-feira, os atos de bravura de jovens e civis que não pararam de ajudar, os gestos de carinho e conforto entre amigos, parentes e desconhecidos comovem e inspiram. Em Santa Maria, não se entra em local de auxílio às vítimas sem que alguém ofereça água, sanduíche ou café de graça. Grupos de voluntários se espalham pela cidade. Os médicos e enfermeiros que atenderam as vítimas se compadecem, sentem, choram, compartilham a dor. As pessoas nas ruas são respeitosas. Durante a marcha, não houve uma reclamação ou incidente por causa de trânsito. Não havia cordões de isolamento entre as ruas. Os carros pararam em silêncio e esperaram a multidão passar. Nas ruas, atos solidários se repetem naturalmente. O comércio exibe cartazes de luto, os moradores usam pulseiras pretas, os carros têm fitas pretas amarradas.
Santa Maria, uma cidade de 263.000 habitantes, será marcada ainda por muito tempo como “a cidade da tragédia da boate”, da mesma forma que a região serrana do Rio passou a carregar o peso de seus mil mortos na chuva de 2011. Tragédias muito diferentes, mas marcadas por erros que combinam omissão, negligência e corrupção no poder público, irresponsabilidade e despreparo de empresários e a certeza de que, de alguma forma o sofrimento poderia ser evitado – ou, no mínimo, muito atenuado. Santa Maria ainda faz a contagem desses erros. Na terça-feira, prefeitura e Corpo de Bombeiros passaram a integrar a lista de investigadospelo Ministério Público. Afinal, para a boate Kiss funcionar, havia autorização legal e alvará atestando as condições de segurança do local.
Nesta quarta-feira, deu-se também outro capítulo razoavelmente previsível desse tipo de tragédia. Advogados dos donos da boate encontraram um caminho para desviar a investigação e a opinião pública do ponto central. Culparam, então, um “resgate desastroso” dos bombeiros e apontaram heroísmo de seus clientes. Como trata-se de crime culposo, pelo que indicam as investigações até o momento, é pouco provável que os quatro presos permaneçam um longo período na cadeia antes da conclusão do inquérito.

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13 de 13

Shenzhen, 2008 (China) - 44 mortes

Reportagem da Revista Veja.

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